Imagine Roberto Dinamite, maior ídolo da história do Vasco, vestindo a camisa do Hercílio Luz. Pois é, a possibilidade foi levantada pela crônica esportiva no fim da década de 80, mais precisamente no dia 12 de janeiro de 1989.
Na época, a equipe tubaronense possuía negociações avançadas para se tornar uma ‘filial’ do Gigante da Colina. A parceria entre dois clubes do mesmo país era considerada inédita no Brasil.
Dinamite, maior nome da história cruzmaltina, que faleceu no início do ano passado, já estava em fim de carreira, mas nunca chegou a vestir a camisa do Leão do Sul. Contudo, a negociação avançada entre os clubes saiu do papel e a parceria realmente existiu.
O Portal Infosul teve acesso ao acervo da família Zumblick, bastante atuante na história do Hercílio Luz, e traz os detalhes desse episódio que uniu um dos maiores clubes do Brasil e um dos times mais antigos do futebol catarinense.

As negociações
No dia 12 de janeiro de 1989, uma quinta-feira, o Jornal de Santa Catarina trazia na manchete “Contrato transforma Hercílio em filial do Vasco”. Foram três anos de negociações até que o contrato fosse concretizado e a parceria entre os clubes de Santa Catarina e do Rio de Janeiro virasse realidade.
À época, o acerto entre as partes foi divulgado pelo presidente vascaíno Antônio Soares Calçada e confirmado à imprensa catarinense pelo vice de futebol do Hercílio Luz, Túlio Zumblick. A negociação foi conduzida pelo presidente do clube, César Liberato Sobrinho. A título de curiosidade, César era torcedor do Vasco e Zumblick era torcedor do Flamengo. Apesar da rivalidade nos clubes de coração, o amor pelo Hercílio Luz falava mais alto e era unanimidade que a parceria salvaria o futuro do clube de Tubarão.
“Somos vascaínos doentes, mas o Hercílio Luz está acima de tudo”
– César Liberato Sobrinho, mandatário colorado responsável pela parceria com o Vasco da Gama

Os principais pontos do ‘convênio’ entre Hercílio Luz e Vasco da Gama:
– Utilização da Cruz de Malta ao lado do escudo hercilista (não há confirmação se o fato se concretizou)
– Montagem de escolinhas de futebol nas categorias mirim, infantil e juvenil
– Elenco profissional do Hercílio Luz no Catarinense 1989 formado por atletas do Vasco, sendo alguns atletas experientes e outros recém profissionalizados
– Intercâmbio entre os clubes
– Possibilidade de toda a renda arrecadada pelo Hercílio Luz com atletas do Vasco ser revertida ao clube carioca
– Tempo de contrato: prazo indeterminado
Dos pontos listados pela reportagem do Jornal de Santa Catarina, a possibilidade de Roberto Dinamite vestir a camisa do Hercílio Luz foi a que mais chamou atenção. Com 35 anos e já em final de carreira, o ídolo vascaíno não veio para Tubarão e acertou, posteriormente, com a Portuguesa-SP para o Campeonato Brasileiro.
“Salvação do time”
No entendimento da diretoria hercilista, a parceria com o Vasco era a salvação do clube para disputar o Campeonato Catarinense de 1989. Embora não estivesse em crise financeira, a equipe tubaronense não teria condições de arcar com os custos de toda a competição.
Para o Vasco, a intenção era comercial. Participando da estruturação do Hercílio Luz, a cúpula vascaína acreditava que os tubaronenses pudessem se tornar campeões estaduais pela terceira vez, fazendo com que a parceria virasse um ‘case de sucesso’ e atraísse olhares para o Gigante da Colina.
Na época, Santa Catarina era o estado ‘off-Rio’ com o maior número de vascaínos.
A assinatura de contrato e o elenco
César Liberato Sobrinho, presidente do Hercílio Luz, foi até o Rio de Janeiro para assinar o contrato de parceria com o Vasco. Paralelo ao encontro com dirigentes do Cruzmaltino, em Tubarão, o vice-presidente Túlio Zumblick se reunia com Orlando Lelé.
O ex-lateral vascaíno, que formou a ‘Barreira do Inferno’ junto a Mazaropi; Abel Braga, Geraldo e Marco Antônio, era coordenador do futebol amador do Vasco. Lelé visitou as instalações do clube e gostou do que viu. No entanto, sugeriu que o clube de Tubarão disponibilizasse um espaço externo do clube para que os atletas que seriam repassados ao Leão do Sul pudessem se alojar na nova cidade.

Foram 18 atletas contratados pelo clube. Alguns com passagem pelo profissional e a maioria juniores ou ex-juniores que haviam recém ‘estourado’ a idade para atuar na base vascaína. Entre os principais nomes, destacava-se o goleiro Jesus, de 22 anos, ex-Seleção Brasileira e Carioca de Juniores, o ponta-esquerda Maurício, de 26 anos, e o meia Niltinho, que atuaram no futebol português, além do volante Nilson, de 25 anos, o meia Pituca, de 25 anos, e o ponteiro Sid, de 22 anos.
Veja o elenco completo (de 9 de abril de 1989 em duelo contra Araranguá):
– Jesus
– Alexandre Pinto
– André
– Abel
– Rufino
– Nilson
– Elizeu
– Pituca
– Vanderci
– Alcino
– Maurício
– Mauro
– Jorge Luiz
– Gerson
– Jadimar
– Anselmo
*Não há informações precisas sobre o motivo de alguns dos atletas citados posteriormente nesta matéria (Roy, Sid e outros) não constarem nesta lista específica. Segundo alguns jornais da época, atletas que não se adaptaram foram embora, já outros se lesionaram.
O treinador escolhido
Além do elenco, o Vasco também disponibilizou ao Hercílio Luz todo o staff. O Intrépido desejava que Orlando Lelé, então coordenador, assumisse o clube. No entanto, o Cruzmaltino se manteve irredutível, já que não planejava perder seu coordenador de base. Três ex-atletas foram colocados à disposição: Gilson Paulino, Renê e Marco Antônio.
Sem a possibilidade da vinda de Orlando Lelé, Gilson Paulino foi o escolhido.
O treinador de 35 anos foi confirmado no dia 24 de janeiro. Ex-lateral com passagens por diversos clubes, campeão da Taça Guanabara e do Campeonato Brasileiro em 1974 pelo Vasco como jogador, Gilson assumiu o comando do Hercílio Luz após uma primeira experiência na nova função pela Cabofriense-RJ.
Além do jovem treinador, também foram contratados para compor a comissão técnica hercilista, o preparador físico Luís Otávio, ex-Fluminense, e o massagista José Pedro.

O alojamento: adaptação era preocupação
Em plena época de carnaval, os atletas e a comissão técnica deixaram o Rio de Janeiro rumo ao novo desafio no sul de Santa Catarina. Cumprindo a exigência do Vasco, a direção do Hercílio Luz disponibilizou aos atletas uma ampla casa em frente à Casa das Bolsas, na rua São José, no Centro, para que eles pudessem se alojar.
No início, enquanto a família de Gilson ainda estava no Rio, o treinador convivia com os atletas, sendo considerado um pai para os garotos. Muitos deles, inclusive, ficavam longe da família pela primeira vez. Um dos exemplos era do garoto Antônio Carlos Roy, de 18 anos. O lateral-direito estava no Vasco desde os 11 anos e vivenciava sua primeira experiência fora do Rio. Em entrevista na época, revelou saudade da família e da namorada. Roy se destacava pelo bom comportamento. Ele integrava o grupo ‘atletas de Cristo’.
Ainda no alojamento, para amenizar a saudade dos hábitos cariocas, os jogadores e a comissão técnica aproveitavam o tempo livre para soltar a voz e o molejo no ‘bom e velho’ pagode.

CURIOSIDADE
Atualmente, Gilson Paulino tem 70 anos. Após passar pelo Hercílio Luz, treinou diversas equipes na carreira, chegando a comandar a Seleção de Guiné-Equatorial. Seu último registro em clube foi pelo Mixto-MT, em 2016.
Antônio Carlos Roy atualmente tem 53 anos. É considerado o ‘rei do acesso’ no Rio de Janeiro, tendo acumulado passagens em equipes de menor expressão do futebol carioca. Seu último clube foi o Rio Branco VN, onde conquistou o Capixaba em 2020.

Desempenho nos Catarinenses de 1989
Com garotos da base vascaína e poucos atletas experientes no elenco, o Hercílio Luz não conseguiu avançar ao quadrangular decisivo para brigar pelo título do Campeonato Catarinense.
No primeiro turno, o time do técnico Gilson Paulino terminou na terceira colocação do grupo A com 10 pontos, sendo três vitórias, quatro empates e três derrotas. No turno seguinte, o time terminou em quarto, com oito pontos. No terceiro, envolvendo as 12 equipes da competição, o time tubaronense amargou a última colocação, indo para a disputa do quadrangular de descenso. Com sete pontos em seis jogos, o ‘Vasco Luz’ escapou da degola com Araranguá (10 pontos) e Brusque (5 pontos). O Próspera, com apenas dois pontos, foi rebaixado.

Catarinense de 1990: o fim da parceria
No início dos anos 90, a parceria prosseguiu por algumas rodadas. O Hercílio terminou o primeiro turno da competição em sexto lugar com 10 pontos.
O fim da parceria teria sido ocasionado por Eurico Miranda. Com a lesão de alguns atletas, o cartola vascaíno, então dirigente do Cruzmaltino, não enviou reposições ao clube tubaronense e teria solicitado o fim do convênio.
No fim da competição, já sem a parceria vigente, o Hercílio não conseguiu avançar ao hexagonal final da competição, terminando na 11ª colocação geral e escapando outra vez do descenso.
A parceria entre Hercílio Luz e Vasco acabou há 34 anos, mas a história foi escrita. E está registrada. Nos jornais e, agora, aqui.
*As informações desta matéria constam em recortes de jornais guardados pela família de Túlio Zumblick.
Agradecimento especial à Andréa Zumblick (filha de Túlio Zumblick), e presidente do Conselho Deliberativo do associativo do Hercílio Luz, pela disponibilidade do acervo e menção ao Fabiano Camilo (@fanatico_hercilista) pela sugestão de pauta.